A ORALIDADE COMO FORMADORA DO INDIVÍDUO EM PSICANÁLISE.

Ednei Murilo da Silveira

Thaiane Pinheiro Pereira

Prof.(a) Me. Regina Coeli de Aguiar Castelo Prudente

RESUMO 

Este estudo trata-se de uma proposta de análise da oralidade através da leitura do conto ‘Chapeuzinho Vermelho’, baseado em uma análise histórico-social na Europa, mais especificamente, na França, numa perspectiva lacaniana, em que a linguagem “parasita” o indivíduo. Para tal, utilizou-se como metodologia uma revisão bibliográfica, com abordagem qualitativa de caráter interpretativo, com levantamento bibliográfico através de diversas fontes de informação, como livros e artigos científicos. O estudo foi embasado, teoricamente, a partir de Freud (1996), Lacan (2017), Darnton (2001), Bettelheim (2010) e outros que tratam do tema. A investigação revelou que, a partir da leitura dos contos de fadas, a formação do indivíduo ocorre, quando este é acolhido e adotado pelo afeto de um outro indivíduo. Concluiu-se que a narrativa de ‘Chapeuzinho Vermelho’ se apresenta como importante instrumento, que pode ser empregado, para que a passagem da menina pela fase edipiana seja funcional, e aproxime o seu desfecho à normalidade, o que significa menor possibilidade de um desenvolvimento de distúrbios psicanalíticos, que poderiam refletir em sua vida adulta.

Palavras-chave: Contos de Fadas. Chapeuzinho Vermelho. Indivíduo. Oralidade. Linguagem.

INTRODUÇÃO

O encanto pelas histórias dos contos de fadas faz parte do imaginário de todos, que tiveram contato com elas na infância, foram envolvidos e instigados por suas narrativas. Nessas histórias, há sempre a presença de um herói ou heroína ligados a algum rito de passagem, com marcas simbólicas do início da sexualidade e, em alguns casos, ele ou ela deve realizar algo atípico, para alcançar sua realização pessoal ou existencial. Além disso, para as crianças e adolescentes, os contos de fadas exprimem verdades sobre a humanidade e sobre o próprio indivíduo (BETTELHEIM, 2010).

Para Corso e Corso (2022), a base dos contos de fada são da ordem da simplicidade, com número reduzido de personagens, e causam impactos no psiquismo de quem escuta tais histórias. Isso acontece, porque os indivíduos identificam-se com elas, com os arcos narrados e com seus protagonistas, e chegam a sofrer com suas dores, e vibrar com suas conquistas. A fantasia é uma forma de manifestar a não verdade da história, e causa um revés no psiquismo humano na tentativa de justificar a narrativa. Através da interpretação dos seus significantes, que é subjetiva, cada indivíduo internaliza o conto, e depreende uma moral advinda dele.

Segundo Bettelheim (2010), os contos de fadas são como espelhos mágicos que refletem os conflitos internos, e mostram como superá-los, para encontrar a harmonia existencial. Na terapia, a psicanálise usa essas histórias como uma chave para desvendar os mistérios da personalidade. Além disso, a luta entre o bem e o mal presente nesses contos ajudam a trabalhar os sentimentos inconscientes, e revelar sua verdadeira natureza. Para o autor, as imagens simbólicas são a veia mestre de um conto de fadas e, por trás de personagens representativos, os leitores ou ouvintes percebem os sentimentos como bons ou ruins, como acontece em ‘Chapeuzinho Vermelho’, quando o Lobo Mau externaliza a figura da maldade para a criança, que cria significantes para esse sentimento.

Para Bettelheim (2010), nos contos de fadas, reforça-se a ideia de que as crianças precisam possuir bons sentimentos e serão recompensadas por isso. O fracasso e as desilusões narradas  não geram, nelas, o desejo de vingança nem o desejo do mal para aqueles que são ruins na narrativa. Nos contos de Cinderela e Branca de Neve, por exemplo, as protagonistas foram maltratadas, humilhadas e oprimidas mas, ao se libertarem, não usaram de vingança contra suas opressoras nem lhes desejaram o mal. Com isso, os contos  mostram que o bem sempre supera o mal, que a esperança sempre deve existir, e que haverá um final feliz.

Diante do exposto, levanta-se a seguinte questão: o contato da criança, desde a mais tenra idade, com o mundo simbólico dos contos de fada é capaz de influenciar positivamente na formação de sua personalidade e suas futuras escolhas?

Em busca de resposta para essa questão, adotou-se como corpus o conto de fadas: ‘Chapeuzinho Vermelho’, através de uma abordagem fundamentada nos conceitos da teoria psicanalítica. A análise do perfil das personagens infantis, contidas no corpus previamente selecionado, tem o objetivo de verificar se os contos de fadas podem colaborar na passagem das meninas pela fase psíquica denominada por Freud (1996) como Complexo de Édipo.

Diante disso, conhecer a influência dessas histórias na psique das meninas pode ser  fundamental para que pais e educadores as utilizem, para motivá-las e envolvê-las com temáticas importantes para sua formação, através da leitura, dramatização e diálogos, que propiciarão maior interação com os sujeitos do seu entorno. Como afirma Vygotsky (1991), a relação do sujeito com os outros é fundamental para o seu desenvolvimento e, através das interações, é formada a subjetividade, que é construída internamente a partir das relações sociais. 

Nesse sentido, o estudo torna-se relevante, pois a criança é influenciada pela oralidade dos contos de fadas, pelas leituras, que realiza e pelas relações sociais e familiares. Assim, busca-se compreender a formação do indivíduo mediante a oralidade dos contos de fadas, e como essas histórias narradas no solo medieval europeu transformou o inconsciente de uma sociedade, e criou modelos “universais” de indivíduos e seus lugares na cultura, com base nos pressupostos da psicanálise.

Para compreender o tema, no primeiro capítulo definiu-se mitos e contos de fadas;  no segundo, discutiu-se a importância da oralidade e dos contos de fadas  na formação dos indivíduos;  no terceiro, fez-se um breve histórico sobre o surgimento dos contos de fadas; no quarto teceu-se algumas observações sobre questões da sexualidade implícitas no conto ‘Chapeuzinho Vermelho’; no quinto, abordou-se a utilização dos contos de fadas na terapia psicanalítica. Em seguida, apresentou-se a metodologia, fez-se as considerações finais, e arrolou-se as referências bibliográficas.

1. MITOS E OS CONTOS DE FADAS

Segundo Mircea (1989), os mitos são tanto o testemunho de uma cultura quanto a expressão das aspirações profundas do inconsciente humano.

O mito conta uma história sagrada. Relata um acontecimento que se deu no tempo primordial, o tempo fabuloso dos princípios. Ou seja, o mito conta como, graças aos feitos de seres sobrenaturais, uma realidade começou a existir, seja na realidade total, o Cosmos, ou apenas um de seus fragmentos: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição (MIRCEA, 1989).

Para Mircea (1989), mito é uma narrativa, que mostra como as coisas passaram a existir, ao falar do gesto criador, e explicar fatos desconhecidos da ciência, por isso ele tem uma função cosmogônica e antropológica, ou seja, conta a origem do mundo e do homem. Além disso, ele pode mostrar ritos de iniciação e formas de se relacionar com a criação divina. Por ser uma produção cultural de uma civilização específica, o mito pode decair com ela. Neles, constata-se dois tabus: a antropofagia e o incesto.

Ao contrário dos mitos, os contos de fadas são narrativas para encantar e não explicar fatos. Todorov (2019), define os contos de fadas como narrativas tradicionais, que remontam a séculos atrás, que encantam e ensinam gerações com suas histórias mágicas e morais edificantes. Essas fábulas atemporais, geralmente destinadas a um público jovem, são caracterizadas por elementos fantásticos, como fadas, bruxas, príncipes encantados e lugares mágicos.

Ainda, segundo Todorov (2019), o conto de fadas faz parte do fantástico, que  é um gênero, que agrupa obras em que a presença do sobrenatural é aceita, desde o início, pelos leitores sem hesitação, surpresa ou descrença. O sobrenatural é surge como fadas, elfos, dragões, poções e varinhas mágicas, com sapos transformados em príncipes, lobos falantes e outros, cuja existência e propriedades violam as leis conhecidas na natureza e pela física, mas são aceitas pelo leitor.

Para Tolkien (2020, p.23 ), “a maioria das boas ‘estórias de fadas’ são sempre aventures de seres humanos no Reino do Perigoso”. O gênero fantasia é a linha divisória entre o fantástico e o bizarro, um estado de dúvida sobre a natureza dos acontecimentos narrados. A fantasia é um gênero fugaz porque dura apenas enquanto persistem as dúvidas do leitor.

Volobuef (1993) define contos de fadas ou conto da Carochinha como

[…] histórias que constituem um legado da tradição oral popular: narrativas transmitidas de gerações a gerações durante um longo tempo antes de serem, afinal coletadas e recolhidas em livros. Com isso, os autores de contos de fadas (ou Volksmärchen), bem como a época de sua criação, tornam-se incógnitas irrecuperáveis. E a prolongada difusão oral no seio do povo mais simples fez destas obras um fruto e um bem da coletividade (VOLOBUEF, 1993, p.100).

Bettelheim (2010) afirma que deve-se ensinar às crianças a entender melhor sobre si, e a aprenderem a lidar com o grande “outro” em suas relações interpessoais. Para isso, inseri-las na cultura, levá-las a compreender o sentido da vida para dotá-la de significado, é a forma mais assertiva e, também, aliada à inserção da literatura, pois esta é o meio que melhor concentra essas informações.

Nesse sentido, Werneck (2012, apud Lévi-Strauss, 1975) aponta o mito como fator importante para compreender o sentido da vida, o que será mais tarde reforçado por Freud (1996), em sua teoria e prática clínica, pautadas na lógica do inconsciente. Seus estudos sobre a interpretação dos sonhos influenciaram  Lacan (2017) a desenvolver outros, que o levaram a concluir que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Com relação a isso, Werneck (2012) afirma ser necessário ao analista, se aprofundar nos estudos da linguagem, na sua estruturação e na etimologia da constituição do sujeito, para ser capaz de interpretar a linguagem do inconsciente, que é o princípio fundamental e primordial da psicanálise: a cura pela fala.

Para Bettelheim (2010), a psicanálise considera a relação entre mitos e contos de fadas muito profunda, pois as histórias tratam das experiências e das lutas internas dos indivíduos. Percebe-se, assim, que a relação entre eles é uma importante área de estudo para os psicanalistas, que, ao interpretar o significado dessas histórias na vida dos pacientes, podem ajudá-los a superar seus desafios psicológicos, a partir de uma abordagem psicanalítica, que considera os símbolos, significados e significantes.

Segundo Freud (1996), esses contos são manifestações de conflitos e desejos inconscientes e, em particular, os contos de fadas destacam-se como um meio de expressar os desejos reprimidos das crianças em uma sociedade regida por normas culturais. Campbell (1990) acrescenta que a jornada do herói é uma característica comum nos mitos e nos contos de fadas, que tratam do desejo humano de vencer os desafios, e experimentar uma transformação significativa. Isso, também, faz parte da experiência, em que os indivíduos passam por desafios e obstáculos, que devem ser superados para realizar sua transformação pessoal e ter controle emocional.  

2. A ORALIDADE E OS CONTOS DE FADAS NA FORMAÇÃO DOS INDIVÍDUOS 

Os contos de fadas são ricos em simbolismo e metáforas, que podem ser relacionados à teoria psicanalítica de Freud (1996). Ele considera  que a formação do sujeito ocorre por meio do conflito entre as forças do ID (sigla para identity, que significa “identidade”),  que é a instância psíquica correspondente aos nossos desejos, pulsões, instintos primitivos e  inconscientes, voltados para a satisfação do prazer; do EGO, a parte consciente da personalidade, responsável por interpretar a realidade, memória, emoções e percepção, ou seja, é a relação do sujeito com o meio, e mediador entre o ID e o superego; e do Superego (a consciência moral internalizada).

Os contos de fadas geralmente apresentam personagens que representam essas forças psicológicas. Por exemplo, o lobo em ‘Chapeuzinho Vermelho’ pode ser visto como uma representação do ID, enquanto Chapeuzinho Vermelho e a avó representam o ego e o superego, respectivamente. O conflito entre esses personagens pode ser interpretado como um conflito interno entre as forças psicológicas que moldam a personalidade do sujeito. Isso acontece, também na história de “A Bela Adormecida”, em que a princesa é enfeitiçada, e só pode ser despertada por um beijo do príncipe encantado. Essa história pode ser vista como uma metáfora para o processo de despertar a consciência e a sexualidade do sujeito, que pode ser reprimida pelo superego.

Os contos de fadas podem ser vistos como narrativas, que exploram os conflitos psicológicos e as forças, que moldam a personalidade do sujeito, temas centrais na teoria psicanalítica de Freud.

Como afirma Darnton (2001):

Os camponeses, no início da França moderna, habitavam um mundo de madrastas e órfãos, de labuta inexorável e interminável, e de emoções brutais, tanto aparentes como reprimidas. A condição humana mudou tanto, desde então, que mal podemos imaginar como era, para pessoas com vidas realmente desagradáveis, grosseiras e curtas. É por isso que precisamos reler ‘Mamãe Ganso’ (DARNTON, 2001, p.47).

Por meio dos contos de fadas adentra-se, magicamente, à penumbra misteriosa do inconsciente.

Esta é exatamente a mensagem que os contos de fada transmitem à criança de forma variada: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que, se a pessoa não se intimida e de defronta com as provações  inesperadas e muitas vezes injustas, dominará todos os obstáculos e ao fim, emergirá vitoriosa” (BETTELHEIM, 2010, p.15).

Todorov (2019) reitera que os contos de fadas são uma forma de expressão oral, que é transmitida de geração em geração durante séculos. A oralidade é uma forma primordial de comunicação desde os primórdios da história, e desempenha um papel importante na formação do indivíduo. E Darnton (2001) acrescenta que, através da tradição oral dos contos de fadas, contados pelos pais, avós e outras figuras de autoridade na vida da criança, ajudam a desenvolver sua imaginação e criatividade. Ao ouvir essas histórias, a criança é exposta a uma linguagem rica e figurativa, que a orienta através da variedade de personagens, situações e temas, e contribui para a expandir sua compreensão do mundo e das experiências humanas.

Para Bettelheim (2010), a oralidade nos contos de fadas tem um impacto significativo na formação do indivíduo no nível psicológico pois, apresentam personagens e situações, que refletem aspectos da experiência humana, como a luta entre o bem e o mal, a busca pela identidade e a superação de desafios. Essas histórias ajudam a criança a desenvolver um senso de si mesma, e compreender as emoções e os desafios que enfrenta ao longo do desenvolvimento. Além disso, os contos de fadas desempenham um papel importante na formação da moralidade da criança ao apresentar personagens, que são recompensados por suas virtudes, como: coragem, honestidade e bondade; e punidos por seus vícios, como: a crueldade, o egoísmo e a ganância. Assim, a criança aprende sobre a importância da ética e da moralidade, e absorve os conceitos e valores da sociedade, em que está inserida.

3. O SURGIMENTO DOS CONTOS DE FADA

Segundo Darnton (2001), o século XVIII foi marcado por muita brutalidade e, naquele contexto, surgiram os contos de fada ao redor de lareiras, e se firmaram como tradição oral, repleta de sentimentos e interpretações que nem os bardos conseguiram imitar. Darnton (2001, p. 32) comenta que era a chamada  “Veillée, reunião junto a lareira à noitinha, quando os homens consertavam suas ferramentas e as mulheres costuravam, escutando as histórias que seriam registradas pelos folcloristas trezentos anos depois” e elas se perpetuaram até hoje.

Ao contrário dos contos de fadas, o folclore é considerado por Darnton (2001) como uma falsificação da tradição, pois os camponeses usavam a oralidade para incutir na mentalidade coletiva, uma forma de moral, que foi incorporado pelos salões da nobreza em seus entretenimentos. Para o autor, estudar histórias populares é uma das formas mais eficazes de entrar no mundo mental dos camponeses, nos tempos do antigo regime, pois “o maior obstáculo é a impossibilidade  de escutar as narrativas, como feitas pelos contadores de histórias” (DARNTON, 2001, p. 32). Os pregadores da Idade Média empregavam tradições de oralidade para explicar princípios morais, apesar do lado sinistro relacionado ao primórdio dos romances de cavalaria, pode-se afirmar que grande parte da literatura desse período veio da cultura popular.

Darnton (2001) ressalta que os conhecimentos compartilhados da vida cotidiana de suas aldeias permitem reconstruir o modo de visão de mundo dos camponeses, daquele tempo. Os homens trabalhavam desde o amanhecer com ferramentas rústicas, para produzir uma colheita em torno de 5 para 1, uma produção muito baixa, se comparada com as produções do Sistema Capitalista. As mulheres, geralmente, se casavam por volta dos 25 anos, tinham, em média, 5 ou 6 filhos, dos quais apenas dois ou três conseguiam sobreviver em estado de pobreza e subnutrição crônica. E segundo Darnton (2001, p.32), eles “[…] comiam carne apenas umas poucas vezes por ano, em dias de festas ou depois do abate do outono, que só ocorria quando não tinham silagem suficiente para alimentar o gado durante o inverno”.

O sistema senhorial e a economia de subsistência mantinham os camponeses numa situação de subordinação à terra, e as técnicas agrícolas primitivas não ajudavam na melhoria da vida nem na ascensão social e, ainda, havia a servidão por dívida. Com isso, tem-se uma ilusão de que não existia mobilidade social na aldeia no período do antigo regime Francês. Quando alguns camponeses prosperavam, atraíam muito ódio, inveja e conflitos e, nesse contexto, é que a escuta dos contos de fada era feita, numa  aldeia que não era uma comunidade feliz e harmoniosa.

[…] para a maioria dos camponeses a vida na aldeia era luta pela sobrevivência, e sobrevivência significava manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes. A linha de pobreza variava de lugar para lugar, de acordo com a extensão de terras necessária para pagar os impostos, dízimos e tributos senhoriais; separar grãos suficientes para plantar no próximo ano; e alimentar a família (DARNTON, 2001, p.43).

Registra-se que era uma luta pela sobrevivência, em que a morte tinha presença incessante para as famílias, que moravam nas aldeias, e conservavam seu posicionamento acima da linha da pobreza.

A vida era uma luta inexorável contra a morte em toda a parte na França do início dos Tempos Modernos. Poucos dos sobreviventes chegaram à idade adulta antes da morte de pelo menos um de seus pais. E poucos pais chegavam ao fim de seus anos férteis, porque a morte os interrompia. Terminados com a morte e não com o divórcio, os casamentos duravam uma média de 15 anos, metade da duração que têm na França de hoje (DARNTON, 2001, p.44).

A vida das mulheres era muito difícil e “o casamento não oferecia nenhuma fuga; ao contrário, impunha uma carga adicional”, porque “as submetia ao trabalho no sistema de manufatura a domicílio, além do trabalho para a família e a fazenda” (DARNTON, 2001, p.55). Com a morte ao encontro de cada curva do caminho, as famílias eram bem mistas, pois os homens acabavam se casando novamente com outras mulheres e, neste contexto, as “madrastas proliferavam em toda parte” (DARNTON, 2001, p.44). Além disso, os enteados podem não receber o tratamento de Cinderela, mas é mais provável que o relacionamento entre irmãos era difícil, pois

[…]um novo filho, muitas vezes, significava a diferença entre a pobreza e a indigência. Mesmo quando não sobrecarregava a despensa da família, podia trazer a penúria para a próxima geração, aumentando o número de pretendentes, quando a terra dos pais fosse dividida entre seus herdeiros (DARNTON, 2001, p.44).

Os vários animais domésticos eram usados para aquecer toda a família, que geralmente dormia em uma ou duas camas. “Assim, as crianças se tornavam observadoras participantes das atividades sexuais de seus pais. Ninguém pensava nelas como criaturas inocentes” (DARNTON, 2001, p.47), nem consideravam a própria infância como uma fase diferente da vida.

Para Ariès (2014, p. 99), “o sentimento de infância não existia” na Idade Média. Para o mundo adulto, se a criança não pudesse executar alguma atividade, ela não contava. Dolto (2005) acrescenta que se a criança sobrevivesse a primeira idade, deveria ser útil para a família e para a sociedade e, dos sete aos quatorze anos poderia se colocar como aprendiz, se tivesse alguma posse. Nesse contexto, uma criança poderia sumir, ser raptada, que ninguém daria falta. Sem falar nas questões de higiene, como doenças (peste negra), que mostram o alto número de mortos nesse período da história.

Darnton (2001) comenta que, durante a pior crise demográfica do século XVII, enquanto a peste e a fome assolavam grande parte da população do norte francês, Perrault, por volta de 1690, escrevia sua coletânea de contos de fadas. Nesse período, a população tentava sobreviver catando restos de ossos jogados pelos curtidores, e muitas mães mostravam seus filhos esqueléticos, à beira da estrada, para conseguir algum alimento dos viajantes. Diante disso, abandonar seus filhos na floresta era uma forma dos pais lidarem com uma crise social e garantir a sobrevivência de quem era considerado mais capaz de produzir pela família. “Comer ou não comer, eis a questão que os camponeses se defrontavam em seu folclore, bem como em seu cotidiano” (DARNTON, 2001, p.47). Nesse contexto, o padrão de beleza era diferente: as curvas e gorduras se opunham ao quadro de subnutrição.

 As histórias acontecem no contexto casa e a aldeia de um lado e, de outro, a estrada. Os camponeses enfrentavam uma tarefa árdua e ilimitada desde a mais tenra idade até o último dia. O abandono nos Contos de Fadas assume outro significado, quando  é interpretado como uma perda da inocência da infância. Pode-se comparar essa perda, nos dias atuais, ao fato dos pais levarem as crianças para a escola. O simples fato de deixá-las em outro ambiente e longe de sua presença, pode ser visto como um abandono. Além disso, o contato com o outro, com várias culturas e com uma norma social gera na criança uma quebra dessa inocência (DARNTON, 2001).

Tais aspectos, aliados ao  abandono pelos pais, tornam-se temas para vários contos, que tratam da fome como um problema de primeira ordem. Daí compreende-se o porquê de sempre fazerem referência a pedidos por comida, e não considerá-los ridículos, por isso, “uma extravagância se destaca, nitidamente: a carne. Numa sociedade de vegetarianos de facto, o luxo supremo era cravar os dentes numa costeleta de carneiro, em carne de porco ou de boi” (DARNTON, 2001, p.52).

Os filhos têm maior área de atuação nos contos, na busca de uma vida melhor sem fome e pobreza, com algum lugar de trabalho, e nem sempre conquistam as princesas. “Quando as versões francesas do Pequeno Polegar e de João e Maria, batem às portas de casas misteriosas, no meio da floresta, os lobos ladrando às suas costas dão um toque de realismo, não de fantasia” (DARNTON, 2001, p.57). As histórias francesas mostram que o mundo é brutal e perigoso.

Por mais louvável que seja dividir o seu pão com mendigos, não se pode confiar em todos aqueles que se encontram pelo caminho. Alguns estranhos talvez se transformem em príncipes e fadas bondosas, mas outros podem ser lobos e feiticeiras e não há maneira de distinguir uns dos outros (DARNTON, 2001, p.78).

O bom comportamento não determina sucesso, como nenhuma moral governa o mundo em geral, pode-se perceber a esperteza tomar o lugar do pietismo.

Os contos não advogam a imoralidade, mas desmentem a noção de que a virtude será recompensada ou de que a vida pode ser conduzida por qualquer outro princípio que não uma desconfiança básica”. […] “A ingenuidade, num mundo de vigaristas é um convite ao desastre, a estupidez representa a antítese da velhacaria; sintetiza o pecado mortal” (DARNTON, 2001, pp. 80 e 82).

Segundo Hueck (2023), no final do século XIX a população europeia acreditava que as pessoas pudessem se transformar em lobos e atacar inocentes menininhas, mesmo que o caso não fosse real, a crença existia. E o medo de ataques de lobos era real, e nunca houve uma menina, um lobo ou um chapeuzinho vermelho específicos, mas devem ter ocorrido muitos casos como esse.

4. A SEXUALIDADE NO CONTO CHAPEUZINHO VERMELHO

No início do conto, a criança é vista como sem importância, imatura e assexuada, sem desejos. Contudo, Freud (2016) apresenta a natureza infantil, com uma sexualidade distinta da sexualidade adulta. E encontra um infantil, que se mantém  no adulto, dotado de características sexuais, com um corpo pulsional, com desejos em meio as suas angústias e fantasias.

Na história de Chapeuzinho Vermelho, a mãe coloca a filha em risco ao manda-la sair sozinha; e a filha se deixa enganar pelo lobo, que a convence a desviar-se do trajeto, para que ele possa devorar sua avó e, em seguida, devorá-la também.

4.1 A versão de Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault  

A versão de Perrault do conto de Chapeuzinho Vermelho tenta retratar, e punir a jovem que comete um erro, que no caso, foi  confiar no Lobo Mau, e recebeu uma punição desproporcional a sua falta: a morte. O autor finaliza seu conto com uma moral da história, em que fala que os lobos podem não ser só animais, mas sim pessoas, que tomam atitudes que tiram a inocência das crianças.

Charles Perrault, de origem burguesa, era membro da corte do rei francês Luís XIV, o rei Sol, obcecado pelo luxo e por excessos. Entrou para a corte para ajudar a terminar o palácio de Versalhes em seus projetos arquitetônicos. Apesar de ideias modernistas, sua publicação dos contos de fadas: ‘Contos de tempos passados, com moralidades’, mais conhecido pelo subtítulo: ‘Contos da Mamãe Gansa’, faria qualquer conservador ficar orgulhoso. E por receio da opinião alheia da corte, não assinou a primeira tiragem, na qual colocou o nome de seu filho mais novo, Pierre Darmancour. Suas histórias foram sucesso nos grandes saraus da elite francesa. Nesse período, as narrativas ainda não eram voltadas para o público infantil, mas tinham um tom mais simples, como se tivessem acabado de ser contadas por um camponês.

4.2. A versão de Chapeuzinho Vermelho dos irmãos Grimm   

Os irmãos Grimm, na tentativa de criar histórias genuinamente nacionalistas, procuraram dar uma nova versão a alguns contos, que já estavam no imaginário das pessoas na Europa. Por isso, eles modificaram o conto de Perrault, e a jovem não recebeu a pena de morte; ela e a avó foram poupadas, e salvas por um caçador. Essa versão foi a que mais se popularizou, e chegou até a atualidade, com versões cinematográficas do Walt Disney.

As histórias foram reunidas por toda a Europa. Primeiro na Itália, por volta de 1550 e 1634, por Gianfrancesco Straparola e Giambattista Basile. E da tradição de registrar histórias, supostamente de camponeses, deu origem à coleção de contos de fadas mais famosa da história dos irmãos Grimm (1812-1815). Elas se espalharam até os países nórdicos, com Hans Christian Andersen. Na Irlanda, o pai do escritor Oscar Wilde, “médico de renome, pedia como pagamento dos pacientes mais pobres uma historinha popular. Sua mulher anotava as narrativas que anos mais tarde se tornaram fonte de inspiração para o filho escrever seus contos” (HUECK, 2023).

Ainda, segundo Hueck (2023), foram as mulheres que começaram a escrever e publicar as primeiras obras de contos de fadas, cujo nome foi dado por elas, apesar de terem poucas histórias com fadas. Marie-Catherine d’Aulnoy publicou sua obra ‘A ilha da felicidade (1690), e despertou o interesse por essas narrativas na nobreza francesa. Nesse período, também, na França, essas narrativas ganharam o status de Literatura Infantil, com muitos contos protagonizados por mulheres: princesas, mocinhas e plebeias.

4.3. Abordagem psicanalista no conto Chapeuzinho vermelho  

A vestimenta de Chapeuzinho Vermelho, o chaperon, era popular entre as mulheres para cobrir a cabeça. Era uma longa capa vermelha, e só foi adicionada à história, quando chegou à Inglaterra, onde esse tipo de roupa era comum entre as mulheres camponesas, e usadas por homens, que poderiam se transformar em lobos, como lobisomens, muito difundidos no sobrenatural camponês. E a capa, para Bettelheim (2010), pode simbolizar uma forma da mãe transferir seus atrativos sexuais para a filha, ao dar-lhe uma capa vermelha atraente..

O encontro de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mau na floresta, quando este a aborda, e pergunta para onde ia, na tentativa de conseguir devorá-la, pode ser observada na ilustração de Doré (fig. 1), que retrata o risco das boas intenções.  “Por mais atraente que seja a ingenuidade, é perigoso permanecer ingênuo toda a vida”, Bettelheim (2010, p.239-240 ). Na tentativa de fugir da situação ameaçadora, que quase a destrói, Chapeuzinho empurra o problema para outra pessoa, no caso, a avó.

Figura 1: O Lobo e Chapeuzinho Vermelho, ilustração de Gustave Doré.

Fonte: https://volobuef.tripod.com/page_maerchen_ilustracoes_volksm.htm

Uma interpretação psicanalítica desse conto sugere que o lobo representa os desejos sexuais reprimidos da criança, enquanto a avó representa a figura da mãe ou de alguma autoridade, que tenta reprimir seus desejos, mas Chapeuzinho Vermelho é atraída por eles ao ser enganada pelo lobo e, finalmente, devorada por ele. Isso representa os perigos de seguir impulsos inconscientes sem orientação adequada.

Mas o lobo não é apenas o sedutor masculino. Também representa todas as tendências associadas e animalescas dentro de nós. Abandonado às virtudes da idade escolar, de ‘caminhar atentamente’ como exige a sua tarefa, Chapeuzinho reverte a posição da criança em busca de prazer edípico (BETTELHEIM, 2010, p.240 )

Além disso, o fato de a mãe enviar Chapeuzinho Vermelho sozinha para visitar a avó, pode representar a incapacidade dos pais de proteger a criança de perigos externos ou internos. Isso pode ser visto como uma crítica à falta de orientação e de aconselhamento na educação das crianças.

O conto do Chapeuzinho Vermelho pode ser visto como uma narrativa sobre a luta interna da criança para lidar com seus desejos inconscientes; a repressão deles, por figuras de autoridade; e os perigos dessa repressão ou de buscar sua satisfação sem orientação adequada.

Na ilustração de Doré (fig.2), pode-se observar o ataque do Lobo Mau à avó, para devorá-la. Inconscientemente foi Chapeuzinho que quis matar a avó, quando deu todas as orientações ao Lobo de como chegar lá.

Figura 2: O Lobo e a vovó, ilustração de Gustave Doré.

Fonte: https://volobuef.tripod.com/page_maerchen_ilustracoes_volksm.htm

Segundo Fromm (1983), o conto da Chapeuzinho Vermelho trata da iniciação do adolescente na vida sexual, e este tipo de relato não havia na herança oral francesa. O conto finaliza com a vitória do EGO, com a menina resgatada da barriga do lobo (elas sempre eram engolidas nos contos franceses); enquanto o ID, é o lobo que nunca é morto nas visões tradicionais.

De acordo com Bettelheim (2010), em Chapeuzinho Vermelho, a narrativa trata de uma garota, que  é muito velha para a fixação oral, mas muito jovem para o sexo adulto, assim, o princípio do prazer pode desviá-la. “A chave para uma história, e para todas essas histórias, é a mensagem afirmativa de seu final […] subjugar, o ego triunfa” (DARNTON, 2001, p.25 ); enquanto o ID é o vilão de ‘Chapeuzinho Vermelho’.

O ID é ao mesmo tempo: o lobo, o pai, o caçador, o ego e, até certo ponto, o superego. Darnton (2001, p. 25) ressalta que “encaminhando o lobo para a casa de sua avó, Chapeuzinho Vermelho conseguiu, de maneira edipiana, liquidar sua mãe”. E o fato de deitar-se nua, na versão de Perrault, na cama com o lobo/pai gera fantasias edipianas. Ela sobrevive, na versão dos irmãos Grimm, no fim, porque renasce num nível mais elevado de existência, quando seu pai reaparece como ego-superego-caçador, e corta a barriga do seu pai como lobo-id, para retirá-la de lá, e todos vivem felizes para sempre  (DARNTON, 2001).

Bettelheim (2010) lê ‘Chapeuzinho Vermelho’ e outras histórias como se não fossem histórias. Ele as aproxima horizontalmente, por assim dizer, no mesmo período da eternidade, como um paciente em um divã. Não questiona sua origem, nem se preocupa com outros significados. “Os contos populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais” (DARNTON, 2001, p. 26).

Sobre a personagem Chapeuzinho Vermelho:

[…] ela nada fizera para merecer esse destino; porque nos contos camponeses ao contrário dos contos de Perrault e dos irmãos Grimm, não desobedece a sua mãe nem deixa de ler os letreiros de uma ordem moral implícita, escritos no mundo que a rodeia. Ela, simplesmente, caminha para dentro das mandíbulas da morte. É a natureza inescrutável e inexorável de calamidades que torna os contos tão comoventes, e não os finais felizes que eles, com frequência adquirem depois do século XVIII (DARNTON, 2001, p.79).

Na figura 3 de Gustavo Doré, baseada no conto da versão dos irmãos Grimm, observa-se que o Lobo Mau é retratado com um aspecto sereno, além de estar transvestido com as roupas da vovozinha; mas a menina parece arrasada por sentimentos ambíguos e poderosos, enquanto olha fascinada, atraída e repelida ao mesmo tempo, para o lobo, que descansa ao seu lado. Segundo Bettelheim (2010, apud Barnes, 1937, p.30 ): “as crianças sabem de algo que não podem explicar; gostam de Chapeuzinho Vermelho e o lobo na cama!”.

O Lobo e Chapeuzinho Vermelho, ilustração de Gustave Doré.
O Lobo e Chapeuzinho Vermelho, ilustração de Gustave Doré.

Figura 3: O Lobo e Chapeuzinho Vermelho, ilustração de Gustave Doré.

Fonte: https://volobuef.tripod.com/page_maerchen_ilustracoes_volksm.htm

5. A UTILIZAÇÃO DOS CONTOS DE FADAS NAS TERAPIAS PSICANALISTAS  

Corso e Corso (2022) apresentam a relação entre contos de fadas e a terapia psicanalítica.

A psicanálise sente-se à vontade no terreno das narrativas, afinal, trocando em miúdos, uma vida é uma história, e o que contamos dela é sempre algum tipo de ficção; sempre será uma trama, da qual parcialmente escrevemos o roteiro (CORSO, CORSO, 2022).

E Freud (1996) comenta sobre a importância dos contos de fadas:

Não é surpreendente descobrir que a psicanálise confirma nosso reconhecimento do lugar importante que os contos de fadas populares alcançam na vida mental dos nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração de seus contos de fadas favoritos ocupam o lugar das lembranças de sua infância: eles transformaram esses contos em lembranças encobridoras. (FREUD, [1913] 1996).

Hoje, as crianças estão restritas aos ambientes controlados pelos adultos que, geralmente, são a casa e escola e, quase nunca, elas têm contato com a natureza (com animais e com a terra) e com a vida dos adultos; estão alienadas, não se colocam em perigo nem sentem o prazer da liberdade. A cultura não inscreveu a libido. Como afirma Dolto (2005), ao chegar em casa, a criança é hipnotizada pela imagem da televisão ou celular/tablete, e isto vai gerar custos psicológicos na infância.

Segundo Schneider e Torossian (2009), os contos de fadas são histórias difundidas desde a Antiguidade até hoje, e têm comprovada influência e relevância na infância. Eles podem ser usados na prática clínica como uma forma de expressão e simbolização do sofrimento, enfocada por diversas correntes teóricas, como a psicanálise freudiana, a psicologia analítica de Jung, a do ego e a do desenvolvimento.

Brito (2020), destaca o papel do simbólico dos contos de fadas e sua relação com o processo de elaboração onírica nas pessoas, bem como o valor dos contos de fadas para o desenvolvimento da imaginação e da criatividade infantil. E Prado Netto (2022), apresenta algumas experiências de terapeutas que utilizam os contos de fadas para tratar crianças com diferentes problemas psicológicos, como psicose, autismo, dificuldades no amadurecimento, medos, angústias e traumas.

6. METODOLOGIA

Neste estudo, fez-se uma revisão bibliográfica narrativa, com abordagem qualitativa de caráter  exploratório (MARCONI, LAKATOS, 1992), com levantamento bibliográfico através de diversos artigos, dissertações e revistas científicas sobre o tema,  disponibilizados na internet. A busca se deu a partir dos descritores: Contos de Fadas, Chapeuzinho Vermelho, oralidade e linguagem.

Segundo Severino (2017), a pesquisa bibliográfica é a pesquisa baseada em registros disponíveis em documentos impressos (como livros, artigos, teses, etc.) produzidos por pesquisas anteriores. Utiliza dados ou categorias teóricas já estudadas e registradas formalmente por outros pesquisadores. Esses textos se tornam a fonte do tópico a ser estudado. Os pesquisadores baseiam seu trabalho nas contribuições dos autores de estudos analíticos contidos no texto.

No entanto, Marconi e Lakatos (1992) recomendam a pesquisa bibliográfica para evitar a duplicação de trabalhos com temas semelhantes. A busca por esses tipos de documentos ou bibliografia torna-se essencial para evitar esforços duplicados, a expressão de ideias já expressas, a inclusão de ‘lugares-comuns’ no projeto, e evitar comportamentos ‘ingênuos’ na escrita. E para enfocar a importância da pesquisa ou mostrar os contrastes entre outras pesquisas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste estudo não foi encerrar a temática estudada, contudo, pode-se compreender a importância da oralidade e dos contos de fadas na formação intelectual e emocional das crianças.  

Em vez de ser apenas um meio de fuga ou fantasia, a realização do desejo, muitas vezes, se torna uma estratégia de sobrevivência em muitas narrativas. A contribuição de Perrault para a literatura francesa preencheu a lacuna entre dois domínios aparentemente incongruentes da cultura popular e da literatura intelectual.

Os contos de fadas podem ser uma ferramenta útil na terapia, pois oferecem uma maneira de explorar questões emocionais e psicológicas de uma forma simbólica e indireta. Essas histórias apresentam personagens e situações, que podem representar aspectos do self e do mundo interno do paciente. Ao trabalhar com essas histórias, o terapeuta pode ajudar o paciente a identificar e compreender seus próprios conflitos internos, e a encontrar maneiras de resolvê-los.

Além disso, os contos de fadas oferecem modelos de comportamento e resolução de problemas, pois mostram como os personagens enfrentam desafios e superam obstáculos. Fornece, assim, exemplos de resiliência e perseverança, que podem ajudar o paciente a desenvolver essas habilidades.

Os contos de fadas são frutos de uma época, e não podem ser lidos ou ouvidos fora do contexto que foram pensados, que retratam o modo de viver e o pensamento de uma sociedade. Na versão sangrenta de Chapeuzinho Vermelho, o vilão era um lobisomem, pois a ideia de homens virarem animais, era bem aceita. A conduta moral de  Perrault, para as meninas, era adequada às mulheres de sua época, ao colocar a culpa sobre a inocente menina e não no lobo. Mas os irmãos Grimm criaram uma versão com final feliz para sua história, e mostrou que nada é inofensivo, ou em vão, tudo tem algum propósito no final. Naquele contexto originário dos contos de fadas,  uma inocente menina poderia ser atacada por um terrível monstro, e em meio às  florestas do século passado na Europa, não era muito difícil disso acontecer.

E os contos de fadas sem o verniz da Disney nunca foram necessariamente para crianças, mas ajudam os indivíduos a pensar o mundo sem falar diretamente dele. No caso específico do conto ‘Chapeuzinho Vermelho’, há uma analogia à maturidade da mulher, pois a criança vai de encontro a avó, ou seja, se torna velha, e ao ser retirada da barriga do lobo, ela já era uma mulher adulta (uma jovem donzela). Além de toda insegurança que as mulheres passam todos os dias, independente da floresta que caminhe, podem sofrer com abusos, sequestros e até com a morte no fim do caminho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, P. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2014.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 21ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

BRITO, Carlos. A psicanálise e a narrativa popular: o uso terapêutico dos contos de fadas. Disponível em: <https://www.construirnoticias.com.br>. Acesso em: 16/07/2023.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no Divã. Psicanálise nas Histórias Infantis. São Paulo: Artmed, 2022.

DARNTON, Robert. Histórias que os camponeses contam: O significado da Mamãe Ganso. In: ______. O grande massacre de gatos. E outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 2001, pp. 21-101.

DOLTO, F. A causa das crianças. São Paulo: Idéias & Letras, 2005.

DORÉ, Gustave. Fairy Tales Told Again (ilustração). Londres: Cassel, Petter and Galpin, 1872. A ilustração é reproduzida em Opie e Poie. Disponível em: <https://volobuef.tripod.com/page_maerchen_ilustracoes_volksm.htm>. Acesso em: 16/07/2023.

SCHNEIDER, Raquel Elisabete Finger; TOROSSIAN, Sandra Djambolakdijan. Contos de fadas: de sua origem à clínica contemporânea. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo. Acesso em: 16/07/2023.

FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. Volume XVIII. Ed. Imago: Rio de Janeiro, 1996.

______. A ocorrência em sonhos, de material oriundo de contos de fadas. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FROMM, Erich. Análise do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

HUECK, Karin. O lado sombrio dos contos de fadas. A origem sangrenta das histórias infantis. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2023.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2017.

MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. São Paulo: Atlas, 1992.

ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

PRADO-NETTO, Arthur. Os Contos de Fadas como Recurso Terapêutico. Disponível em: <https://arthurpradonetto.com. Acesso em: 16/07/2023.

SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2017.

TODOROV, Tzvetan. O  estranho e  o maravilhoso.  In: ______. Introdução à literatura fantástica. São  Paulo: Ed.  Perspectiva,  2019 (Debates , 98). p.  47-63. 

TOLKIEN, John Ronald R. Árvore e folha. São Paulo: Editora WMF, 2013.

VOLOBUEF, Karin. Um estudo de contos de fadas. UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Revista de Letras, Vol. 33. 1993. pp. 99-114. Disponível em: <http://www.jstor.org. Acesso em: 26/04/2023.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

WERNECK, Mariza Martins Furquim. O trabalho do mito: diálogos entre Freud e Lévi-Strauss. Ciência e Cultura. vol.64, no.1. São Paulo: Jan. 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org. Acesso em: 11/07/2023.

A ORALIDADE COMO FORMADORA DO INDIVÍDUO EM PSICANÁLISE.

Ednei Murilo da Silveira

Thaiane Pinheiro Pereira

Prof.(a) Me. Regina Coeli de Aguiar Castelo Prudente

RESUMO 

Este estudo trata-se de uma proposta de análise da oralidade através da leitura do conto ‘Chapeuzinho Vermelho’, baseado em uma análise histórico-social na Europa, mais especificamente, na França, numa perspectiva lacaniana, em que a linguagem “parasita” o indivíduo. Para tal, utilizou-se como metodologia uma revisão bibliográfica, com abordagem qualitativa de caráter interpretativo, com levantamento bibliográfico através de diversas fontes de informação, como livros e artigos científicos. O estudo foi embasado, teoricamente, a partir de Freud (1996), Lacan (2017), Darnton (2001), Bettelheim (2010) e outros que tratam do tema. A investigação revelou que, a partir da leitura dos contos de fadas, a formação do indivíduo ocorre, quando este é acolhido e adotado pelo afeto de um outro indivíduo. Concluiu-se que a narrativa de ‘Chapeuzinho Vermelho’ se apresenta como importante instrumento, que pode ser empregado, para que a passagem da menina pela fase edipiana seja funcional, e aproxime o seu desfecho à normalidade, o que significa menor possibilidade de um desenvolvimento de distúrbios psicanalíticos, que poderiam refletir em sua vida adulta.

Palavras-chave: Contos de Fadas. Chapeuzinho Vermelho. Indivíduo. Oralidade. Linguagem.

INTRODUÇÃO

O encanto pelas histórias dos contos de fadas faz parte do imaginário de todos, que tiveram contato com elas na infância, foram envolvidos e instigados por suas narrativas. Nessas histórias, há sempre a presença de um herói ou heroína ligados a algum rito de passagem, com marcas simbólicas do início da sexualidade e, em alguns casos, ele ou ela deve realizar algo atípico, para alcançar sua realização pessoal ou existencial. Além disso, para as crianças e adolescentes, os contos de fadas exprimem verdades sobre a humanidade e sobre o próprio indivíduo (BETTELHEIM, 2010).

Para Corso e Corso (2022), a base dos contos de fada são da ordem da simplicidade, com número reduzido de personagens, e causam impactos no psiquismo de quem escuta tais histórias. Isso acontece, porque os indivíduos identificam-se com elas, com os arcos narrados e com seus protagonistas, e chegam a sofrer com suas dores, e vibrar com suas conquistas. A fantasia é uma forma de manifestar a não verdade da história, e causa um revés no psiquismo humano na tentativa de justificar a narrativa. Através da interpretação dos seus significantes, que é subjetiva, cada indivíduo internaliza o conto, e depreende uma moral advinda dele.

Segundo Bettelheim (2010), os contos de fadas são como espelhos mágicos que refletem os conflitos internos, e mostram como superá-los, para encontrar a harmonia existencial. Na terapia, a psicanálise usa essas histórias como uma chave para desvendar os mistérios da personalidade. Além disso, a luta entre o bem e o mal presente nesses contos ajudam a trabalhar os sentimentos inconscientes, e revelar sua verdadeira natureza. Para o autor, as imagens simbólicas são a veia mestre de um conto de fadas e, por trás de personagens representativos, os leitores ou ouvintes percebem os sentimentos como bons ou ruins, como acontece em ‘Chapeuzinho Vermelho’, quando o Lobo Mau externaliza a figura da maldade para a criança, que cria significantes para esse sentimento.

Para Bettelheim (2010), nos contos de fadas, reforça-se a ideia de que as crianças precisam possuir bons sentimentos e serão recompensadas por isso. O fracasso e as desilusões narradas  não geram, nelas, o desejo de vingança nem o desejo do mal para aqueles que são ruins na narrativa. Nos contos de Cinderela e Branca de Neve, por exemplo, as protagonistas foram maltratadas, humilhadas e oprimidas mas, ao se libertarem, não usaram de vingança contra suas opressoras nem lhes desejaram o mal. Com isso, os contos  mostram que o bem sempre supera o mal, que a esperança sempre deve existir, e que haverá um final feliz.

Diante do exposto, levanta-se a seguinte questão: o contato da criança, desde a mais tenra idade, com o mundo simbólico dos contos de fada é capaz de influenciar positivamente na formação de sua personalidade e suas futuras escolhas?

Em busca de resposta para essa questão, adotou-se como corpus o conto de fadas: ‘Chapeuzinho Vermelho’, através de uma abordagem fundamentada nos conceitos da teoria psicanalítica. A análise do perfil das personagens infantis, contidas no corpus previamente selecionado, tem o objetivo de verificar se os contos de fadas podem colaborar na passagem das meninas pela fase psíquica denominada por Freud (1996) como Complexo de Édipo.

Diante disso, conhecer a influência dessas histórias na psique das meninas pode ser  fundamental para que pais e educadores as utilizem, para motivá-las e envolvê-las com temáticas importantes para sua formação, através da leitura, dramatização e diálogos, que propiciarão maior interação com os sujeitos do seu entorno. Como afirma Vygotsky (1991), a relação do sujeito com os outros é fundamental para o seu desenvolvimento e, através das interações, é formada a subjetividade, que é construída internamente a partir das relações sociais. 

Nesse sentido, o estudo torna-se relevante, pois a criança é influenciada pela oralidade dos contos de fadas, pelas leituras, que realiza e pelas relações sociais e familiares. Assim, busca-se compreender a formação do indivíduo mediante a oralidade dos contos de fadas, e como essas histórias narradas no solo medieval europeu transformou o inconsciente de uma sociedade, e criou modelos “universais” de indivíduos e seus lugares na cultura, com base nos pressupostos da psicanálise.

Para compreender o tema, no primeiro capítulo definiu-se mitos e contos de fadas;  no segundo, discutiu-se a importância da oralidade e dos contos de fadas  na formação dos indivíduos;  no terceiro, fez-se um breve histórico sobre o surgimento dos contos de fadas; no quarto teceu-se algumas observações sobre questões da sexualidade implícitas no conto ‘Chapeuzinho Vermelho’; no quinto, abordou-se a utilização dos contos de fadas na terapia psicanalítica. Em seguida, apresentou-se a metodologia, fez-se as considerações finais, e arrolou-se as referências bibliográficas.

1. MITOS E OS CONTOS DE FADAS

Segundo Mircea (1989), os mitos são tanto o testemunho de uma cultura quanto a expressão das aspirações profundas do inconsciente humano.

O mito conta uma história sagrada. Relata um acontecimento que se deu no tempo primordial, o tempo fabuloso dos princípios. Ou seja, o mito conta como, graças aos feitos de seres sobrenaturais, uma realidade começou a existir, seja na realidade total, o Cosmos, ou apenas um de seus fragmentos: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição (MIRCEA, 1989).

Para Mircea (1989), mito é uma narrativa, que mostra como as coisas passaram a existir, ao falar do gesto criador, e explicar fatos desconhecidos da ciência, por isso ele tem uma função cosmogônica e antropológica, ou seja, conta a origem do mundo e do homem. Além disso, ele pode mostrar ritos de iniciação e formas de se relacionar com a criação divina. Por ser uma produção cultural de uma civilização específica, o mito pode decair com ela. Neles, constata-se dois tabus: a antropofagia e o incesto.

Ao contrário dos mitos, os contos de fadas são narrativas para encantar e não explicar fatos. Todorov (2019), define os contos de fadas como narrativas tradicionais, que remontam a séculos atrás, que encantam e ensinam gerações com suas histórias mágicas e morais edificantes. Essas fábulas atemporais, geralmente destinadas a um público jovem, são caracterizadas por elementos fantásticos, como fadas, bruxas, príncipes encantados e lugares mágicos.

Ainda, segundo Todorov (2019), o conto de fadas faz parte do fantástico, que  é um gênero, que agrupa obras em que a presença do sobrenatural é aceita, desde o início, pelos leitores sem hesitação, surpresa ou descrença. O sobrenatural é surge como fadas, elfos, dragões, poções e varinhas mágicas, com sapos transformados em príncipes, lobos falantes e outros, cuja existência e propriedades violam as leis conhecidas na natureza e pela física, mas são aceitas pelo leitor.

Para Tolkien (2020, p.23 ), “a maioria das boas ‘estórias de fadas’ são sempre aventures de seres humanos no Reino do Perigoso”. O gênero fantasia é a linha divisória entre o fantástico e o bizarro, um estado de dúvida sobre a natureza dos acontecimentos narrados. A fantasia é um gênero fugaz porque dura apenas enquanto persistem as dúvidas do leitor.

Volobuef (1993) define contos de fadas ou conto da Carochinha como

[…] histórias que constituem um legado da tradição oral popular: narrativas transmitidas de gerações a gerações durante um longo tempo antes de serem, afinal coletadas e recolhidas em livros. Com isso, os autores de contos de fadas (ou Volksmärchen), bem como a época de sua criação, tornam-se incógnitas irrecuperáveis. E a prolongada difusão oral no seio do povo mais simples fez destas obras um fruto e um bem da coletividade (VOLOBUEF, 1993, p.100).

Bettelheim (2010) afirma que deve-se ensinar às crianças a entender melhor sobre si, e a aprenderem a lidar com o grande “outro” em suas relações interpessoais. Para isso, inseri-las na cultura, levá-las a compreender o sentido da vida para dotá-la de significado, é a forma mais assertiva e, também, aliada à inserção da literatura, pois esta é o meio que melhor concentra essas informações.

Nesse sentido, Werneck (2012, apud Lévi-Strauss, 1975) aponta o mito como fator importante para compreender o sentido da vida, o que será mais tarde reforçado por Freud (1996), em sua teoria e prática clínica, pautadas na lógica do inconsciente. Seus estudos sobre a interpretação dos sonhos influenciaram  Lacan (2017) a desenvolver outros, que o levaram a concluir que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Com relação a isso, Werneck (2012) afirma ser necessário ao analista, se aprofundar nos estudos da linguagem, na sua estruturação e na etimologia da constituição do sujeito, para ser capaz de interpretar a linguagem do inconsciente, que é o princípio fundamental e primordial da psicanálise: a cura pela fala.

Para Bettelheim (2010), a psicanálise considera a relação entre mitos e contos de fadas muito profunda, pois as histórias tratam das experiências e das lutas internas dos indivíduos. Percebe-se, assim, que a relação entre eles é uma importante área de estudo para os psicanalistas, que, ao interpretar o significado dessas histórias na vida dos pacientes, podem ajudá-los a superar seus desafios psicológicos, a partir de uma abordagem psicanalítica, que considera os símbolos, significados e significantes.

Segundo Freud (1996), esses contos são manifestações de conflitos e desejos inconscientes e, em particular, os contos de fadas destacam-se como um meio de expressar os desejos reprimidos das crianças em uma sociedade regida por normas culturais. Campbell (1990) acrescenta que a jornada do herói é uma característica comum nos mitos e nos contos de fadas, que tratam do desejo humano de vencer os desafios, e experimentar uma transformação significativa. Isso, também, faz parte da experiência, em que os indivíduos passam por desafios e obstáculos, que devem ser superados para realizar sua transformação pessoal e ter controle emocional.  

2. A ORALIDADE E OS CONTOS DE FADAS NA FORMAÇÃO DOS INDIVÍDUOS 

Os contos de fadas são ricos em simbolismo e metáforas, que podem ser relacionados à teoria psicanalítica de Freud (1996). Ele considera  que a formação do sujeito ocorre por meio do conflito entre as forças do ID (sigla para identity, que significa “identidade”),  que é a instância psíquica correspondente aos nossos desejos, pulsões, instintos primitivos e  inconscientes, voltados para a satisfação do prazer; do EGO, a parte consciente da personalidade, responsável por interpretar a realidade, memória, emoções e percepção, ou seja, é a relação do sujeito com o meio, e mediador entre o ID e o superego; e do Superego (a consciência moral internalizada).

Os contos de fadas geralmente apresentam personagens que representam essas forças psicológicas. Por exemplo, o lobo em ‘Chapeuzinho Vermelho’ pode ser visto como uma representação do ID, enquanto Chapeuzinho Vermelho e a avó representam o ego e o superego, respectivamente. O conflito entre esses personagens pode ser interpretado como um conflito interno entre as forças psicológicas que moldam a personalidade do sujeito. Isso acontece, também na história de “A Bela Adormecida”, em que a princesa é enfeitiçada, e só pode ser despertada por um beijo do príncipe encantado. Essa história pode ser vista como uma metáfora para o processo de despertar a consciência e a sexualidade do sujeito, que pode ser reprimida pelo superego.

Os contos de fadas podem ser vistos como narrativas, que exploram os conflitos psicológicos e as forças, que moldam a personalidade do sujeito, temas centrais na teoria psicanalítica de Freud.

Como afirma Darnton (2001):

Os camponeses, no início da França moderna, habitavam um mundo de madrastas e órfãos, de labuta inexorável e interminável, e de emoções brutais, tanto aparentes como reprimidas. A condição humana mudou tanto, desde então, que mal podemos imaginar como era, para pessoas com vidas realmente desagradáveis, grosseiras e curtas. É por isso que precisamos reler ‘Mamãe Ganso’ (DARNTON, 2001, p.47).

Por meio dos contos de fadas adentra-se, magicamente, à penumbra misteriosa do inconsciente.

Esta é exatamente a mensagem que os contos de fada transmitem à criança de forma variada: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que, se a pessoa não se intimida e de defronta com as provações  inesperadas e muitas vezes injustas, dominará todos os obstáculos e ao fim, emergirá vitoriosa” (BETTELHEIM, 2010, p.15).

Todorov (2019) reitera que os contos de fadas são uma forma de expressão oral, que é transmitida de geração em geração durante séculos. A oralidade é uma forma primordial de comunicação desde os primórdios da história, e desempenha um papel importante na formação do indivíduo. E Darnton (2001) acrescenta que, através da tradição oral dos contos de fadas, contados pelos pais, avós e outras figuras de autoridade na vida da criança, ajudam a desenvolver sua imaginação e criatividade. Ao ouvir essas histórias, a criança é exposta a uma linguagem rica e figurativa, que a orienta através da variedade de personagens, situações e temas, e contribui para a expandir sua compreensão do mundo e das experiências humanas.

Para Bettelheim (2010), a oralidade nos contos de fadas tem um impacto significativo na formação do indivíduo no nível psicológico pois, apresentam personagens e situações, que refletem aspectos da experiência humana, como a luta entre o bem e o mal, a busca pela identidade e a superação de desafios. Essas histórias ajudam a criança a desenvolver um senso de si mesma, e compreender as emoções e os desafios que enfrenta ao longo do desenvolvimento. Além disso, os contos de fadas desempenham um papel importante na formação da moralidade da criança ao apresentar personagens, que são recompensados por suas virtudes, como: coragem, honestidade e bondade; e punidos por seus vícios, como: a crueldade, o egoísmo e a ganância. Assim, a criança aprende sobre a importância da ética e da moralidade, e absorve os conceitos e valores da sociedade, em que está inserida.

3. O SURGIMENTO DOS CONTOS DE FADA

Segundo Darnton (2001), o século XVIII foi marcado por muita brutalidade e, naquele contexto, surgiram os contos de fada ao redor de lareiras, e se firmaram como tradição oral, repleta de sentimentos e interpretações que nem os bardos conseguiram imitar. Darnton (2001, p. 32) comenta que era a chamada  “Veillée, reunião junto a lareira à noitinha, quando os homens consertavam suas ferramentas e as mulheres costuravam, escutando as histórias que seriam registradas pelos folcloristas trezentos anos depois” e elas se perpetuaram até hoje.

Ao contrário dos contos de fadas, o folclore é considerado por Darnton (2001) como uma falsificação da tradição, pois os camponeses usavam a oralidade para incutir na mentalidade coletiva, uma forma de moral, que foi incorporado pelos salões da nobreza em seus entretenimentos. Para o autor, estudar histórias populares é uma das formas mais eficazes de entrar no mundo mental dos camponeses, nos tempos do antigo regime, pois “o maior obstáculo é a impossibilidade  de escutar as narrativas, como feitas pelos contadores de histórias” (DARNTON, 2001, p. 32). Os pregadores da Idade Média empregavam tradições de oralidade para explicar princípios morais, apesar do lado sinistro relacionado ao primórdio dos romances de cavalaria, pode-se afirmar que grande parte da literatura desse período veio da cultura popular.

Darnton (2001) ressalta que os conhecimentos compartilhados da vida cotidiana de suas aldeias permitem reconstruir o modo de visão de mundo dos camponeses, daquele tempo. Os homens trabalhavam desde o amanhecer com ferramentas rústicas, para produzir uma colheita em torno de 5 para 1, uma produção muito baixa, se comparada com as produções do Sistema Capitalista. As mulheres, geralmente, se casavam por volta dos 25 anos, tinham, em média, 5 ou 6 filhos, dos quais apenas dois ou três conseguiam sobreviver em estado de pobreza e subnutrição crônica. E segundo Darnton (2001, p.32), eles “[…] comiam carne apenas umas poucas vezes por ano, em dias de festas ou depois do abate do outono, que só ocorria quando não tinham silagem suficiente para alimentar o gado durante o inverno”.

O sistema senhorial e a economia de subsistência mantinham os camponeses numa situação de subordinação à terra, e as técnicas agrícolas primitivas não ajudavam na melhoria da vida nem na ascensão social e, ainda, havia a servidão por dívida. Com isso, tem-se uma ilusão de que não existia mobilidade social na aldeia no período do antigo regime Francês. Quando alguns camponeses prosperavam, atraíam muito ódio, inveja e conflitos e, nesse contexto, é que a escuta dos contos de fada era feita, numa  aldeia que não era uma comunidade feliz e harmoniosa.

[…] para a maioria dos camponeses a vida na aldeia era luta pela sobrevivência, e sobrevivência significava manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes. A linha de pobreza variava de lugar para lugar, de acordo com a extensão de terras necessária para pagar os impostos, dízimos e tributos senhoriais; separar grãos suficientes para plantar no próximo ano; e alimentar a família (DARNTON, 2001, p.43).

Registra-se que era uma luta pela sobrevivência, em que a morte tinha presença incessante para as famílias, que moravam nas aldeias, e conservavam seu posicionamento acima da linha da pobreza.

A vida era uma luta inexorável contra a morte em toda a parte na França do início dos Tempos Modernos. Poucos dos sobreviventes chegaram à idade adulta antes da morte de pelo menos um de seus pais. E poucos pais chegavam ao fim de seus anos férteis, porque a morte os interrompia. Terminados com a morte e não com o divórcio, os casamentos duravam uma média de 15 anos, metade da duração que têm na França de hoje (DARNTON, 2001, p.44).

A vida das mulheres era muito difícil e “o casamento não oferecia nenhuma fuga; ao contrário, impunha uma carga adicional”, porque “as submetia ao trabalho no sistema de manufatura a domicílio, além do trabalho para a família e a fazenda” (DARNTON, 2001, p.55). Com a morte ao encontro de cada curva do caminho, as famílias eram bem mistas, pois os homens acabavam se casando novamente com outras mulheres e, neste contexto, as “madrastas proliferavam em toda parte” (DARNTON, 2001, p.44). Além disso, os enteados podem não receber o tratamento de Cinderela, mas é mais provável que o relacionamento entre irmãos era difícil, pois

[…]um novo filho, muitas vezes, significava a diferença entre a pobreza e a indigência. Mesmo quando não sobrecarregava a despensa da família, podia trazer a penúria para a próxima geração, aumentando o número de pretendentes, quando a terra dos pais fosse dividida entre seus herdeiros (DARNTON, 2001, p.44).

Os vários animais domésticos eram usados para aquecer toda a família, que geralmente dormia em uma ou duas camas. “Assim, as crianças se tornavam observadoras participantes das atividades sexuais de seus pais. Ninguém pensava nelas como criaturas inocentes” (DARNTON, 2001, p.47), nem consideravam a própria infância como uma fase diferente da vida.

Para Ariès (2014, p. 99), “o sentimento de infância não existia” na Idade Média. Para o mundo adulto, se a criança não pudesse executar alguma atividade, ela não contava. Dolto (2005) acrescenta que se a criança sobrevivesse a primeira idade, deveria ser útil para a família e para a sociedade e, dos sete aos quatorze anos poderia se colocar como aprendiz, se tivesse alguma posse. Nesse contexto, uma criança poderia sumir, ser raptada, que ninguém daria falta. Sem falar nas questões de higiene, como doenças (peste negra), que mostram o alto número de mortos nesse período da história.

Darnton (2001) comenta que, durante a pior crise demográfica do século XVII, enquanto a peste e a fome assolavam grande parte da população do norte francês, Perrault, por volta de 1690, escrevia sua coletânea de contos de fadas. Nesse período, a população tentava sobreviver catando restos de ossos jogados pelos curtidores, e muitas mães mostravam seus filhos esqueléticos, à beira da estrada, para conseguir algum alimento dos viajantes. Diante disso, abandonar seus filhos na floresta era uma forma dos pais lidarem com uma crise social e garantir a sobrevivência de quem era considerado mais capaz de produzir pela família. “Comer ou não comer, eis a questão que os camponeses se defrontavam em seu folclore, bem como em seu cotidiano” (DARNTON, 2001, p.47). Nesse contexto, o padrão de beleza era diferente: as curvas e gorduras se opunham ao quadro de subnutrição.

 As histórias acontecem no contexto casa e a aldeia de um lado e, de outro, a estrada. Os camponeses enfrentavam uma tarefa árdua e ilimitada desde a mais tenra idade até o último dia. O abandono nos Contos de Fadas assume outro significado, quando  é interpretado como uma perda da inocência da infância. Pode-se comparar essa perda, nos dias atuais, ao fato dos pais levarem as crianças para a escola. O simples fato de deixá-las em outro ambiente e longe de sua presença, pode ser visto como um abandono. Além disso, o contato com o outro, com várias culturas e com uma norma social gera na criança uma quebra dessa inocência (DARNTON, 2001).

Tais aspectos, aliados ao  abandono pelos pais, tornam-se temas para vários contos, que tratam da fome como um problema de primeira ordem. Daí compreende-se o porquê de sempre fazerem referência a pedidos por comida, e não considerá-los ridículos, por isso, “uma extravagância se destaca, nitidamente: a carne. Numa sociedade de vegetarianos de facto, o luxo supremo era cravar os dentes numa costeleta de carneiro, em carne de porco ou de boi” (DARNTON, 2001, p.52).

Os filhos têm maior área de atuação nos contos, na busca de uma vida melhor sem fome e pobreza, com algum lugar de trabalho, e nem sempre conquistam as princesas. “Quando as versões francesas do Pequeno Polegar e de João e Maria, batem às portas de casas misteriosas, no meio da floresta, os lobos ladrando às suas costas dão um toque de realismo, não de fantasia” (DARNTON, 2001, p.57). As histórias francesas mostram que o mundo é brutal e perigoso.

Por mais louvável que seja dividir o seu pão com mendigos, não se pode confiar em todos aqueles que se encontram pelo caminho. Alguns estranhos talvez se transformem em príncipes e fadas bondosas, mas outros podem ser lobos e feiticeiras e não há maneira de distinguir uns dos outros (DARNTON, 2001, p.78).

O bom comportamento não determina sucesso, como nenhuma moral governa o mundo em geral, pode-se perceber a esperteza tomar o lugar do pietismo.

Os contos não advogam a imoralidade, mas desmentem a noção de que a virtude será recompensada ou de que a vida pode ser conduzida por qualquer outro princípio que não uma desconfiança básica”. […] “A ingenuidade, num mundo de vigaristas é um convite ao desastre, a estupidez representa a antítese da velhacaria; sintetiza o pecado mortal” (DARNTON, 2001, pp. 80 e 82).

Segundo Hueck (2023), no final do século XIX a população europeia acreditava que as pessoas pudessem se transformar em lobos e atacar inocentes menininhas, mesmo que o caso não fosse real, a crença existia. E o medo de ataques de lobos era real, e nunca houve uma menina, um lobo ou um chapeuzinho vermelho específicos, mas devem ter ocorrido muitos casos como esse.

4. A SEXUALIDADE NO CONTO CHAPEUZINHO VERMELHO

No início do conto, a criança é vista como sem importância, imatura e assexuada, sem desejos. Contudo, Freud (2016) apresenta a natureza infantil, com uma sexualidade distinta da sexualidade adulta. E encontra um infantil, que se mantém  no adulto, dotado de características sexuais, com um corpo pulsional, com desejos em meio as suas angústias e fantasias.

Na história de Chapeuzinho Vermelho, a mãe coloca a filha em risco ao manda-la sair sozinha; e a filha se deixa enganar pelo lobo, que a convence a desviar-se do trajeto, para que ele possa devorar sua avó e, em seguida, devorá-la também.

4.1 A versão de Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault  

A versão de Perrault do conto de Chapeuzinho Vermelho tenta retratar, e punir a jovem que comete um erro, que no caso, foi  confiar no Lobo Mau, e recebeu uma punição desproporcional a sua falta: a morte. O autor finaliza seu conto com uma moral da história, em que fala que os lobos podem não ser só animais, mas sim pessoas, que tomam atitudes que tiram a inocência das crianças.

Charles Perrault, de origem burguesa, era membro da corte do rei francês Luís XIV, o rei Sol, obcecado pelo luxo e por excessos. Entrou para a corte para ajudar a terminar o palácio de Versalhes em seus projetos arquitetônicos. Apesar de ideias modernistas, sua publicação dos contos de fadas: ‘Contos de tempos passados, com moralidades’, mais conhecido pelo subtítulo: ‘Contos da Mamãe Gansa’, faria qualquer conservador ficar orgulhoso. E por receio da opinião alheia da corte, não assinou a primeira tiragem, na qual colocou o nome de seu filho mais novo, Pierre Darmancour. Suas histórias foram sucesso nos grandes saraus da elite francesa. Nesse período, as narrativas ainda não eram voltadas para o público infantil, mas tinham um tom mais simples, como se tivessem acabado de ser contadas por um camponês.

4.2. A versão de Chapeuzinho Vermelho dos irmãos Grimm   

Os irmãos Grimm, na tentativa de criar histórias genuinamente nacionalistas, procuraram dar uma nova versão a alguns contos, que já estavam no imaginário das pessoas na Europa. Por isso, eles modificaram o conto de Perrault, e a jovem não recebeu a pena de morte; ela e a avó foram poupadas, e salvas por um caçador. Essa versão foi a que mais se popularizou, e chegou até a atualidade, com versões cinematográficas do Walt Disney.

As histórias foram reunidas por toda a Europa. Primeiro na Itália, por volta de 1550 e 1634, por Gianfrancesco Straparola e Giambattista Basile. E da tradição de registrar histórias, supostamente de camponeses, deu origem à coleção de contos de fadas mais famosa da história dos irmãos Grimm (1812-1815). Elas se espalharam até os países nórdicos, com Hans Christian Andersen. Na Irlanda, o pai do escritor Oscar Wilde, “médico de renome, pedia como pagamento dos pacientes mais pobres uma historinha popular. Sua mulher anotava as narrativas que anos mais tarde se tornaram fonte de inspiração para o filho escrever seus contos” (HUECK, 2023).

Ainda, segundo Hueck (2023), foram as mulheres que começaram a escrever e publicar as primeiras obras de contos de fadas, cujo nome foi dado por elas, apesar de terem poucas histórias com fadas. Marie-Catherine d’Aulnoy publicou sua obra ‘A ilha da felicidade (1690), e despertou o interesse por essas narrativas na nobreza francesa. Nesse período, também, na França, essas narrativas ganharam o status de Literatura Infantil, com muitos contos protagonizados por mulheres: princesas, mocinhas e plebeias.

4.3. Abordagem psicanalista no conto Chapeuzinho vermelho  

A vestimenta de Chapeuzinho Vermelho, o chaperon, era popular entre as mulheres para cobrir a cabeça. Era uma longa capa vermelha, e só foi adicionada à história, quando chegou à Inglaterra, onde esse tipo de roupa era comum entre as mulheres camponesas, e usadas por homens, que poderiam se transformar em lobos, como lobisomens, muito difundidos no sobrenatural camponês. E a capa, para Bettelheim (2010), pode simbolizar uma forma da mãe transferir seus atrativos sexuais para a filha, ao dar-lhe uma capa vermelha atraente..

O encontro de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mau na floresta, quando este a aborda, e pergunta para onde ia, na tentativa de conseguir devorá-la, pode ser observada na ilustração de Doré (fig. 1), que retrata o risco das boas intenções.  “Por mais atraente que seja a ingenuidade, é perigoso permanecer ingênuo toda a vida”, Bettelheim (2010, p.239-240 ). Na tentativa de fugir da situação ameaçadora, que quase a destrói, Chapeuzinho empurra o problema para outra pessoa, no caso, a avó.

Figura 1: O Lobo e Chapeuzinho Vermelho, ilustração de Gustave Doré.

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Uma interpretação psicanalítica desse conto sugere que o lobo representa os desejos sexuais reprimidos da criança, enquanto a avó representa a figura da mãe ou de alguma autoridade, que tenta reprimir seus desejos, mas Chapeuzinho Vermelho é atraída por eles ao ser enganada pelo lobo e, finalmente, devorada por ele. Isso representa os perigos de seguir impulsos inconscientes sem orientação adequada.

Mas o lobo não é apenas o sedutor masculino. Também representa todas as tendências associadas e animalescas dentro de nós. Abandonado às virtudes da idade escolar, de ‘caminhar atentamente’ como exige a sua tarefa, Chapeuzinho reverte a posição da criança em busca de prazer edípico (BETTELHEIM, 2010, p.240 )

Além disso, o fato de a mãe enviar Chapeuzinho Vermelho sozinha para visitar a avó, pode representar a incapacidade dos pais de proteger a criança de perigos externos ou internos. Isso pode ser visto como uma crítica à falta de orientação e de aconselhamento na educação das crianças.

O conto do Chapeuzinho Vermelho pode ser visto como uma narrativa sobre a luta interna da criança para lidar com seus desejos inconscientes; a repressão deles, por figuras de autoridade; e os perigos dessa repressão ou de buscar sua satisfação sem orientação adequada.

Na ilustração de Doré (fig.2), pode-se observar o ataque do Lobo Mau à avó, para devorá-la. Inconscientemente foi Chapeuzinho que quis matar a avó, quando deu todas as orientações ao Lobo de como chegar lá.

Este estudo trata-se de uma proposta de análise da oralidade através da leitura do conto ‘Chapeuzinho Vermelho’, baseado em uma análise histórico-social na Europa, mais especificamente, na França, numa perspectiva lacaniana, em que a linguagem “parasita” o indivíduo. Para tal, utilizou-se como metodologia uma revisão bibliográfica, com abordagem qualitativa de caráter interpretativo, com levantamento bibliográfico através de diversas fontes de informação, como livros e artigos científicos. O estudo foi embasado, teoricamente, a partir de Freud (1996), Lacan (2017), Darnton (2001), Bettelheim (2010) e outros que tratam do tema. A investigação revelou que, a partir da leitura dos contos de fadas, a formação do indivíduo ocorre, quando este é acolhido e adotado pelo afeto de um outro indivíduo. Concluiu-se que a narrativa de ‘Chapeuzinho Vermelho’ se apresenta como importante instrumento, que pode ser empregado, para que a passagem da menina pela fase edipiana seja funcional, e aproxime o seu desfecho à normalidade, o que significa menor possibilidade de um desenvolvimento de distúrbios psicanalíticos, que poderiam refletir em sua vida adulta.

Figura 2: O Lobo e a vovó, ilustração de Gustave Doré.

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Segundo Fromm (1983), o conto da Chapeuzinho Vermelho trata da iniciação do adolescente na vida sexual, e este tipo de relato não havia na herança oral francesa. O conto finaliza com a vitória do EGO, com a menina resgatada da barriga do lobo (elas sempre eram engolidas nos contos franceses); enquanto o ID, é o lobo que nunca é morto nas visões tradicionais.

De acordo com Bettelheim (2010), em Chapeuzinho Vermelho, a narrativa trata de uma garota, que  é muito velha para a fixação oral, mas muito jovem para o sexo adulto, assim, o princípio do prazer pode desviá-la. “A chave para uma história, e para todas essas histórias, é a mensagem afirmativa de seu final […] subjugar, o ego triunfa” (DARNTON, 2001, p.25 ); enquanto o ID é o vilão de ‘Chapeuzinho Vermelho’.

O ID é ao mesmo tempo: o lobo, o pai, o caçador, o ego e, até certo ponto, o superego. Darnton (2001, p. 25) ressalta que “encaminhando o lobo para a casa de sua avó, Chapeuzinho Vermelho conseguiu, de maneira edipiana, liquidar sua mãe”. E o fato de deitar-se nua, na versão de Perrault, na cama com o lobo/pai gera fantasias edipianas. Ela sobrevive, na versão dos irmãos Grimm, no fim, porque renasce num nível mais elevado de existência, quando seu pai reaparece como ego-superego-caçador, e corta a barriga do seu pai como lobo-id, para retirá-la de lá, e todos vivem felizes para sempre  (DARNTON, 2001).

Bettelheim (2010) lê ‘Chapeuzinho Vermelho’ e outras histórias como se não fossem histórias. Ele as aproxima horizontalmente, por assim dizer, no mesmo período da eternidade, como um paciente em um divã. Não questiona sua origem, nem se preocupa com outros significados. “Os contos populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais” (DARNTON, 2001, p. 26).

Sobre a personagem Chapeuzinho Vermelho:

[…] ela nada fizera para merecer esse destino; porque nos contos camponeses ao contrário dos contos de Perrault e dos irmãos Grimm, não desobedece a sua mãe nem deixa de ler os letreiros de uma ordem moral implícita, escritos no mundo que a rodeia. Ela, simplesmente, caminha para dentro das mandíbulas da morte. É a natureza inescrutável e inexorável de calamidades que torna os contos tão comoventes, e não os finais felizes que eles, com frequência adquirem depois do século XVIII (DARNTON, 2001, p.79).

Na figura 3 de Gustavo Doré, baseada no conto da versão dos irmãos Grimm, observa-se que o Lobo Mau é retratado com um aspecto sereno, além de estar transvestido com as roupas da vovozinha; mas a menina parece arrasada por sentimentos ambíguos e poderosos, enquanto olha fascinada, atraída e repelida ao mesmo tempo, para o lobo, que descansa ao seu lado. Segundo Bettelheim (2010, apud Barnes, 1937, p.30 ): “as crianças sabem de algo que não podem explicar; gostam de Chapeuzinho Vermelho e o lobo na cama!”.

Figura 3: O Lobo e Chapeuzinho Vermelho, ilustração de Gustave Doré.

Fonte: https://volobuef.tripod.com/page_maerchen_ilustracoes_volksm.htm

5. A UTILIZAÇÃO DOS CONTOS DE FADAS NAS TERAPIAS PSICANALISTAS  

Corso e Corso (2022) apresentam a relação entre contos de fadas e a terapia psicanalítica.

A psicanálise sente-se à vontade no terreno das narrativas, afinal, trocando em miúdos, uma vida é uma história, e o que contamos dela é sempre algum tipo de ficção; sempre será uma trama, da qual parcialmente escrevemos o roteiro (CORSO, CORSO, 2022).

E Freud (1996) comenta sobre a importância dos contos de fadas:

Não é surpreendente descobrir que a psicanálise confirma nosso reconhecimento do lugar importante que os contos de fadas populares alcançam na vida mental dos nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração de seus contos de fadas favoritos ocupam o lugar das lembranças de sua infância: eles transformaram esses contos em lembranças encobridoras. (FREUD, [1913] 1996).

Hoje, as crianças estão restritas aos ambientes controlados pelos adultos que, geralmente, são a casa e escola e, quase nunca, elas têm contato com a natureza (com animais e com a terra) e com a vida dos adultos; estão alienadas, não se colocam em perigo nem sentem o prazer da liberdade. A cultura não inscreveu a libido. Como afirma Dolto (2005), ao chegar em casa, a criança é hipnotizada pela imagem da televisão ou celular/tablete, e isto vai gerar custos psicológicos na infância.

Segundo Schneider e Torossian (2009), os contos de fadas são histórias difundidas desde a Antiguidade até hoje, e têm comprovada influência e relevância na infância. Eles podem ser usados na prática clínica como uma forma de expressão e simbolização do sofrimento, enfocada por diversas correntes teóricas, como a psicanálise freudiana, a psicologia analítica de Jung, a do ego e a do desenvolvimento.

Brito (2020), destaca o papel do simbólico dos contos de fadas e sua relação com o processo de elaboração onírica nas pessoas, bem como o valor dos contos de fadas para o desenvolvimento da imaginação e da criatividade infantil. E Prado Netto (2022), apresenta algumas experiências de terapeutas que utilizam os contos de fadas para tratar crianças com diferentes problemas psicológicos, como psicose, autismo, dificuldades no amadurecimento, medos, angústias e traumas.

6. METODOLOGIA

Neste estudo, fez-se uma revisão bibliográfica narrativa, com abordagem qualitativa de caráter  exploratório (MARCONI, LAKATOS, 1992), com levantamento bibliográfico através de diversos artigos, dissertações e revistas científicas sobre o tema,  disponibilizados na internet. A busca se deu a partir dos descritores: Contos de Fadas, Chapeuzinho Vermelho, oralidade e linguagem.

Segundo Severino (2017), a pesquisa bibliográfica é a pesquisa baseada em registros disponíveis em documentos impressos (como livros, artigos, teses, etc.) produzidos por pesquisas anteriores. Utiliza dados ou categorias teóricas já estudadas e registradas formalmente por outros pesquisadores. Esses textos se tornam a fonte do tópico a ser estudado. Os pesquisadores baseiam seu trabalho nas contribuições dos autores de estudos analíticos contidos no texto.

No entanto, Marconi e Lakatos (1992) recomendam a pesquisa bibliográfica para evitar a duplicação de trabalhos com temas semelhantes. A busca por esses tipos de documentos ou bibliografia torna-se essencial para evitar esforços duplicados, a expressão de ideias já expressas, a inclusão de ‘lugares-comuns’ no projeto, e evitar comportamentos ‘ingênuos’ na escrita. E para enfocar a importância da pesquisa ou mostrar os contrastes entre outras pesquisas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste estudo não foi encerrar a temática estudada, contudo, pode-se compreender a importância da oralidade e dos contos de fadas na formação intelectual e emocional das crianças.  

Em vez de ser apenas um meio de fuga ou fantasia, a realização do desejo, muitas vezes, se torna uma estratégia de sobrevivência em muitas narrativas. A contribuição de Perrault para a literatura francesa preencheu a lacuna entre dois domínios aparentemente incongruentes da cultura popular e da literatura intelectual.

Os contos de fadas podem ser uma ferramenta útil na terapia, pois oferecem uma maneira de explorar questões emocionais e psicológicas de uma forma simbólica e indireta. Essas histórias apresentam personagens e situações, que podem representar aspectos do self e do mundo interno do paciente. Ao trabalhar com essas histórias, o terapeuta pode ajudar o paciente a identificar e compreender seus próprios conflitos internos, e a encontrar maneiras de resolvê-los.

Além disso, os contos de fadas oferecem modelos de comportamento e resolução de problemas, pois mostram como os personagens enfrentam desafios e superam obstáculos. Fornece, assim, exemplos de resiliência e perseverança, que podem ajudar o paciente a desenvolver essas habilidades.

Os contos de fadas são frutos de uma época, e não podem ser lidos ou ouvidos fora do contexto que foram pensados, que retratam o modo de viver e o pensamento de uma sociedade. Na versão sangrenta de Chapeuzinho Vermelho, o vilão era um lobisomem, pois a ideia de homens virarem animais, era bem aceita. A conduta moral de  Perrault, para as meninas, era adequada às mulheres de sua época, ao colocar a culpa sobre a inocente menina e não no lobo. Mas os irmãos Grimm criaram uma versão com final feliz para sua história, e mostrou que nada é inofensivo, ou em vão, tudo tem algum propósito no final. Naquele contexto originário dos contos de fadas,  uma inocente menina poderia ser atacada por um terrível monstro, e em meio às  florestas do século passado na Europa, não era muito difícil disso acontecer.

E os contos de fadas sem o verniz da Disney nunca foram necessariamente para crianças, mas ajudam os indivíduos a pensar o mundo sem falar diretamente dele. No caso específico do conto ‘Chapeuzinho Vermelho’, há uma analogia à maturidade da mulher, pois a criança vai de encontro a avó, ou seja, se torna velha, e ao ser retirada da barriga do lobo, ela já era uma mulher adulta (uma jovem donzela). Além de toda insegurança que as mulheres passam todos os dias, independente da floresta que caminhe, podem sofrer com abusos, sequestros e até com a morte no fim do caminho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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